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Intolerância Religiosa: da laicidade do Estado ao preconceito enraizado

By 21 de janeiro de 2021fevereiro 10th, 2021No Comments
OAB SP divulga nota de repúdio contra declarações de intolerância religiosa

O Brasil é, por sua Constituição, um Estado laico. Essa laicidade é construtiva porque, no âmago do princípio, está a liberdade religiosa. Assim, diz a Carta em seu artigo 5º, cada brasileiro e cada brasileira são donos de sua crença e livres para praticar suas liturgias. Construída por mãos e cérebros dos mais diferentes matizes, apesar de preconceitos enraizados e histórico de opressões de várias naturezas, a Nação brasileira é de fato plurirreligiosa.

“Embora situações isoladas possam demonstrar o contrário, é possível afirmar que há liberdade religiosa de fato no Brasil”, diz o advogado Samuel Gomes de Lima, presidente da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da OAB SP.

A liberdade constitucional, claro está, não significa que a intolerância não se manifeste em muitas situações, daí a importância de uma data como 21 de janeiro, quando se comemora o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa.

“Os preconceitos e os conflitos geram intolerância religiosa, que consiste num conjunto de ideologias e atitudes ofensivas a crenças e práticas religiosas ou mesmo a quem não segue uma religião. Trata-se de um crime de ódio que fere a liberdade e a dignidade humana”, Gomes de Lima.

O crime a que o advogado se refere está tipificado no Artigo 208 do Código Penal: “Escarnecer de alguém publicamente por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso: Pena – detenção de um mês a um ano, ou multa”.

Já a Lei 9.459, de 1997, considera crime a prática de discriminação ou preconceito contra religiões. “Ninguém pode ser discriminado em razão de credo religioso. O crime de discriminação religiosa é inafiançável e imprescritível”, observa Gomes de Lima.

Ultraje a cultos, escárnio por motivo de crença, perturbação de cerimônias, vilipêndio de símbolos. Tudo isso acontece e deve ser denunciado e combatido. E as religiões de matriz africana, cujos seguidores são predominantemente pessoas negras, são alvos frequentes à medida que se confundem com meros rituais pagãos.

“Essa visão distorcida permanece em virtude do alto grau de preconceito existente em nossa sociedade. São diversas as religiões de origem africana, porém no Brasil o Candomblé e a Umbanda são as mais comuns. Ambas são também os maiores alvos de ataques de intolerantes religiosos”, denuncia Gomes de Lima. E prossegue: “As religiões de matriz africana são parte da história de povos que foram tirados de suas terras e trazidos ao Brasil para serem escravizados, forçados a romperem com seus costumes e crenças vindos da África. Foram impostos às pessoas negras a cultura e a crença europeias”.

Segundo o advogado, “a visão da religião do outro como paganismo nada mais é do que a falta de enxergá-lo como portador do mesmo direito que cada um reivindica para si. Quem atribui a característica de religião pagã às crenças de origem africana se coloca numa posição de superioridade que na realidade não existe, é uma distorção”.

Em crescimento nas últimas décadas, as religiões neopentecostais também costumam ser atacadas justamente por sua proliferação, que não constitui irregularidade nenhuma. Como explica o presidente da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da OAB SP: “As religiões neopentecostais, também chamadas de carismáticas, são aquelas nas quais os fiéis acreditam na palavra pós-bíblica dos dons do Espírito Santo, incluindo glossolalia (falar em várias línguas), cura e realização de profecias. Eles praticam a imposição de mãos buscando a atuação do Espírito Santo. O crescimento desse segmento religioso na sociedade brasileira em nada representa uma ameaça à liberdade religiosa”.

No âmbito da Igreja Católica, ainda majoritária no país, o que se vê é muito mais um conflito interno entre doutrinas. Enquanto a doutrina tradicional católica procura mostrar à humanidade o caminho da salvação e da vida eterna baseados no Credo, no Pai Nosso, nos Dez Mandamentos e nos sacramentos, que resumem sua base espiritual, a Doutrina Social da Igreja defende a atuação em prol de uma sociedade mais justa.

“Essa dicotomia não é prejudicial à fé católica nem estabelece barreiras à prática de outras fés. Antes, é enriquecedora, o que a torna singular”, entende Samuel Gomes de Lima.

 

Anti-islamismo e antissemitismo

 

Preconceito transformado em violência e opressão são rotineiros contra seguidores do islamismo, considerados equivocadamente radicais anti-ocidente. Não no Brasil, mas em países como os Estados Unidos, por exemplo, islamistas chegaram a ser perseguidos pelo Estado depois do “11 de Setembro”.

Na verdade, terroristas que se dizem islâmicos atentam antes de tudo contra os verdadeiros muçulmanos.

“Comportamentos radicais são geralmente praticados por grupos específicos ou por ativistas que agem de forma independente. No Brasil, não temos notícias de radicalismo islâmico, sendo essa comunidade muito ativa do ponto de vista social e que se replica com uma vida religiosa bastante positiva em várias mesquitas pelo país”, descreve Gomes de Lima.

A mesma postura tolerante em relação aos islâmicos não se pode atribuir aos brasileiros no que diz respeito aos judeus, como afirma o advogado estudioso da liberdade religiosa: “Há antissemitismo no Brasil a exemplo do que ocorre na maioria dos países. Em pleno Século XXI, podemos observar certos grupos religiosos radicais desenvolvendo um discurso de ódio contra os judeus e até incitando seus pares a uma ação mais efetiva”.

O Século XXI e suas intempéries também reacendeu uma discussão que se imaginava superada: o confronto entre ciência e religião. O que, dada a suposta evolução de ambas, não deveria existir.

“Embora alguns vejam ciência e religião como conflitantes, isso não ocorre de fato”, sentencia Samuel Gomes de Lima. “Um dos grandes dilemas dessa questão é a origem do universo. Se isso for encarado como duas teses, há espaço para a ciência e para a religião”, avalia, expondo duas teorias em aberto: “Deus criou tudo, como acreditam os criacionistas, ou o Universo é fruto de uma expansão depois do Big Bang, um evolucionismo materialista, que só aceita a matéria. Ciência e religião são perfeitamente conciliáveis se não houver radicalismos de um lado e de outro”.

Neste século que teve, em sua primeira década, uma das mais graves crises econômicas da história global moderna e que no início do seu segundo decênio abriga uma pandemia que já matou mais 2 milhões de pessoas, as religiões sujeitam-se, também elas, ao preço da liberdade de seus críticos. Liberdade de humor, por exemplo.

No fim de 2020, os fanáticos que chacinaram humoristas do tabloide francês Charlie Hebdo, adepto de um humor agressivo com foco nas religiões, foram definitivamente condenados. Entre os brasileiros, está preso na Rússia o autor do atentado do ano passado contra a sede da produtora do humorístico Porta dos Fundos, cujo programa de Natal em 2019 contestou aspectos sagrados do cristianismo.

Para Samuel Gomes de Lima, “naturalmente, os adeptos das religiões retratadas não apreciam certas brincadeiras e sátiras. Mas é muito importante a manutenção da liberdade de expressão como um bem jurídico tão valioso quanto a liberdade religiosa. Uma não anula a outra e cada qual tem o seu legítimo espaço”.

À frente da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da OAB SP, Gomes de Lima lidera um trabalho em duas frentes distintas. A primeira, de caráter preventivo, promove eventos como fóruns, congressos, simpósios e seminários. Outra tem como objetivo, como ele mesmo descreve, “atender os expedientes que chegam à Comissão, sendo de aplicações variadas, ora envolvendo um parecer sobre tombamento de imóvel religioso, ora posicionando-se sobre leis acerca da liberdade religiosa – somos um grupo de advogados e advogadas e de membros colaboradores atuando de forma voluntária, mas muito comprometidos com a defesa, a proteção e a promoção da liberdade religiosa”.